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O desafio do serviço social na atenção domiciliar em tempos de pandemia

by viviejaque

Daniela Carvalho*

O serviço social é uma profissão regulamentada que atua com a viabilidade de direitos, com as relações humanas, com as vulnerabilidades sociais e financeiras, com famílias fragilizadas frente a situações de doenças, com o contexto da dor social que atinge todos os envolvidos e impacta para além do diagnóstico.

O profissional dessa categoria mantém-se presente em todos os momentos do atendimento domiciliar, início, meio e fim, pois o seu papel contempla realizar a avaliação de ordem social, subsidiar a equipe multidisciplinar nesse cenário, observar a dinâmica e a organização familiar, elucidar dúvidas e inseguranças que venham a surgir, orientar as rotinas assistenciais, alinhar e reforçar o papel do cuidador, decifrar a realidade oculta que provoca e aumenta as dificuldades diárias, mediar inúmeros conflitos, identificar as limitações e possibilidades, auxiliar nos processos de desmames, articular com as redes de apoio, acolher os envolvidos que, não raramente, estão totalmente sobrecarregados, entre muitas outras atividades.

Como podemos observar, as atribuições do assistente social nessa área da saúde é bastante ampla, instigante e dinâmica, já que a execução do seu trabalho dá-se em uma heterogeneidade de circunstâncias aliada a uma realidade que não é estática, que se modifica a todo momento, obrigando o especialista a rever as suas percepções e a reavaliar as suas formas diárias de intervenções. Costumo dizer que não temos monotonia!

Diferentemente do contexto hospitalar, para desvendar todo esse campo fascinante da atenção domiciliar, em que conhecemos o sujeito na sua essência, criamos vínculos, efetuamos o acompanhamento, identificamos os hábitos e as culturas que interferem no aspecto social do doente, que ocorre dentro das rotinas e no conforto do ambiente doméstico, o profissional precisa estar muito bem embasado por meio da sua instrumentalidade, ser criativo, questionador e, ainda, crítico da realidade de forma propositiva, complementando, fundamentalmente, com o conhecimento da regulamentação da profissão, do código de ética, além da normativa RDC nº 11/2006, do Ministério da Saúde, dos protocolos gerais que envolvem a saúde e demais políticas públicas.

Atualmente, no Brasil, estamos vivenciando uma crise sanitária gravíssima, que nos assola desde o início de 2020, a qual alterou todos os aspectos da vida humana, desorganizou todos os sistemas e ainda evidenciou cada vez mais os problemas da coletividade. Porém, com a saúde hospitalar em sinal de colapso, os atendimentos nos lares ganharam mais visibilidade entre a população e vêm se mostrando como uma alternativa segura e viável ao tratamento dos doentes, como trazem alguns números já divulgados pela mídia.

A atenção domiciliar sempre foi um campo com algumas adversidades para os profissionais, seja da rede pública, seja da privada, mas, com a pandemia, ele se tornou ainda mais desafiador. Nos primeiros meses do contágio, foi necessária uma aproximação bem intensa dos serviços com as residências, mesmo que de maneira alternativa, para que se conversasse sobre o que estava ocorrendo de modo transparente, educativo e consciente, repassando exaustivamente todos os protocolos, mostrando o uso correto dos equipamentos de proteção, reforçando os hábitos de higiene para prevenção e discutindo sobre as situações de exposições desnecessárias.

Concomitantemente, foi preciso alterar e modificar o formato de alguns atendimentos a fim de que os envolvidos não corressem nenhum tipo de risco. O trabalho, de uma forma geral, passou a ser estabelecido com a integração de novos meios de comunicação, obrigando todos a usufruir muito mais da tecnologia que avançou o correspondente a uma década nesse período, integrando na assistência as chamadas de vídeos, os aplicativos on-line, e, ainda, trazendo a novidade do home office (quando possível).

O mundo todo precisou incluir outras ferramentas de trabalho, fortalecer-se frente aos obstáculos que vieram junto a esse panorama, e com o assistente social não seria diferente. Esse profissional também precisou se articular rapidamente e inserir novos modelos laborais, para que se mantivesse presente no acolhimento com as famílias, mesmo que distante fisicamente, a fim de não as deixar desamparadas em um momento de tantas incertezas e dúvidas.

As visitas presenciais tornaram-se mais espaçadas e realizadas somente em casos essenciais. As avaliações de novos pacientes foram sendo ajustadas e feitas exclusivamente para os da modalidade de internação, ou em situações sinalizadas pelo restante da equipe, em que a observação dos critérios de elegibilidade social (estrutura domiciliar, organização para o recebimento do paciente, identificação do cuidador etc.) eram fundamentais para a segurança de todos na casa. Sabíamos que precisávamos desospitalizar o maior número possível de enfermos, para fins de liberação de leitos hospitalares, mas não se podia pensar em correr riscos com alguma inclusão não elegível.

Mesmo com o passar dos meses, nos locais onde há a disponibilidade de recursos tecnológicos (esse acesso universal ainda é uma utopia no país), as diversas reuniões habituais para gerenciamentos de conflitos, alinhamentos da assistência, elucidações dos planos de atendimento, ratificações dos direitos e deveres, esclarecimentos e encaminhamentos seguem sendo feitas de maneira remota, para evitarmos os contados e as aglomerações.

A demanda do campo domiciliar apresentou grande elevação nesse período, mas, infelizmente, passamos a conviver em um contexto histórico mais vulnerável, desprotegido, com extensas dificuldades econômicas, pessoas amedrontadas pela contaminação, famílias totalmente isoladas da sociedade e, ainda, extremamente preocupadas em relação ao fluxo de profissionais nas suas residências, o que, consequentemente, trouxe um aumento no nível de exigências por parte destes, e, claro, de desentendimentos com as equipes em geral.

Situações como essas destacadas triplicaram na assistência impulsionadas pela conjuntura calamitosa enfrentada, que vem se arrastando pela demora na vacinação da população, e pela restrição de circulação das pessoas, que impacta direta e indiretamente a renda dos familiares, com fechamentos de postos de trabalhos ou reduções salariais. Com tudo isso acontecendo, é visível a diminuição da condição social e financeira dos pacientes, que passaram a necessitar mais da ajuda do governo, por meio das políticas públicas cada vez mais insuficientes e precárias.

Também observamos, no dia a dia, diversas solicitações de reduções/recusas de atendimentos em virtude de particularidades familiares; a escassez de mão de obra no mercado, em vista da grande demanda das unidades de saúde; o alvoroço nas residências, com a insegurança na garantia de realização de algumas assistências de alta complexidade; e até mesmo o comprometimento e o desequilíbrio mental de todos que fazem parte desse processo.

Um ano e meio depois, ainda continuamos em um contexto totalmente fora do comum, sem data certa para acabar, aprendendo a resistir. Desta forma, permanecemos tendo consciência e entendimento do nosso papel como profissional e ser humano, proporcionando aos pacientes, familiares e cuidadores um ambiente seguro, de qualidade, por meio de uma comunicação assertiva, uma posição acolhedora, que trata o sujeito em todas as suas dimensões, propiciando, com isso, um olhar humanizado, digno e sistêmico, apesar de o momento ser incerto, complexo e desafiador para todos.

Seguimos em frente esperando pelo fim dessa crise avassaladora da saúde, mas aguardando pela continuidade da ascensão e do fortalecimento da atenção domiciliar, mostrando que essa é uma realidade que, ao contrário da Covid-19, veio para ficar, trazendo benefícios e qualidade de vida para a sociedade.

*Assistente social da atenção domiciliar privada. Graduada em Serviço Social, especialista em Intervenção Familiar e Comunitária e em Direito Aplicado à Saúde.

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