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A importância do cuidado nutricional na desospitalização

by viviejaque

Vanessa Tosta Ferreira*

A desnutrição é definida como estado resultante da deficiência de nutrientes capaz de provocar alterações na composição corporal, na funcionalidade e no estado mental, gerando prejuízos ao desfecho clínico do paciente, como piora na resposta imunológica, aumento de complicações cirúrgicas e infecciosas, atraso no processo de cicatrização, desenvolvimento de lesões por pressão, aumento no risco de mortalidade e no tempo de internação, incitando o crescimento dos custos hospitalares.

Em 1998, o Inquérito Brasileiro de Avaliação Nutricional Hospitalar, conhecido como Ibranutri (WAITZBERG; CAIAFFA; CORREIA, 2001), avaliou 4 mil pacientes internados na rede pública de vários estados brasileiros, constatando 48,1% de desnutridos. Posteriormente, em 2016, Correia, Perman e Waitzberg (2017) e os mesmos autores do Ibranutri conduziram estudo similar incluindo alguns hospitais da América do Sul. Apesar de passados quase 20 anos, houve uma progressão no cenário da desnutrição, chegando-se à prevalência de 60%.

Visando mobilizar instituições hospitalares e profissionais da saúde, a Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (Braspen) instituiu, em 2019, a campanha “Diga Não à Desnutrição” (TOLEDO et al., 2018). Por meio de método mnemônico com a palavra “desnutrição”, cada letra demonstra 11 passos sistemáticos desde a avaliação nutricional até a alta hospitalar. A campanha propõe difundir informações com o intuito de alertar e combater a desnutrição e suas consequências. Neste tocante, a letra O – “Oriente a alta hospitalar” salienta a importância da desospitalização para a continuidade da Terapia Nutricional Domiciliar (TND), pois, quando bem aplicada, contribui para a prevenção e/ou a recuperação do estado nutricional, reduzindo comorbidades relativas à desnutrição, a necessidade de intervenções clínicas e as readmissões hospitalares. 

Sabemos que pacientes com tempo de internação prolongado apresentam redução do apetite por diversos fatores, e nem sempre a alta hospitalar ocorre quando há a recuperação total do estado nutricional ou da capacidade plena de se alimentar e da utilização biológica dos nutrientes.

Nesse contexto, o nutricionista deve precocemente determinar o risco nutricional, realizar a avaliação do estado nutricional, estabelecer as metas nutricionais, verificar a via de alimentação, monitorar o ingerido versus o estimado e acompanhar as intolerâncias e/ou intercorrências para que os desfechos clínicos sejam melhorados em domicílio.

Dispor o paciente no centro do cuidado, envolver os familiares e identificar possíveis barreiras de comunicação tornam-se peças importantes para assegurar o cumprimento e a fiscalização do plano terapêutico durante a internação até a alta hospitalar. 

O plano de alta deve ser aplicado pela equipe multiprofissional de forma individualizada, de acordo com as condições clínicas e nutricionais do paciente, adaptando-se à realidade do local (moradia), à fonte pagadora e à dinâmica familiar (VAN AANHOLT et al., 2018). Dependendo da via de alimentação do paciente, a TND pode transformar a rotina diária dos envolvidos, impactando a qualidade de vida, principalmente na fase inicial. 

A relação do nutricionista neste ambiente torna-se um ponto condicionante na adesão aos cuidados nutricionais, uma vez que as atividades de aquisição, higienização, conservação, manipulação e administração dos alimentos, na maioria das vezes, são realizadas pela família/cuidador.

Um segundo planejamento nutricional nos pós-alta deve ser considerado para rever o plano de cuidado e a prescrição dietética, definir a periodicidade do aconselhamento nutricional e realizar o reforço das orientações junto ao paciente e aos familiares.

A Terapia Nutricional Oral (TNO) tem um papel importante junto ao paciente com via oral hipo, alimentado ou em transição da dieta enteral para a oral. Para maior adesão da alimentação oral, deve-se considerar as preferências, as aversões e as intolerâncias conforme condições clínicas e o grau de disfagia alinhado à alteração na consistência dos alimentos e ao uso de espessantes, quando necessário.

Orientar e treinar o cuidador para registro das quantidades consumidas em cada refeição (desjejum, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e ceia) ao longo do dia por pelo menos três dias consecutivos é uma estratégia que auxilia no monitoramento da ingesta oral do paciente domiciliar. Com esses dados, o nutricionista avalia a aceitação alimentar e realiza o cálculo da ingestão realizada pelo paciente comparando as metas nutricionais. Na observância de consumo abaixo de 60% das necessidades nutricionais, principalmente em pacientes com risco nutricional, desnutridos, com demanda metabólica aumentada, sarcopênicos, com lesão por pressão, oncológicos ou em preparo pré-operatório, deve-se recomendar o uso de Suplemento Oral Domiciliar (SOD). 

A diretriz publicada pela European Society for Clinical Nutrition and Metabolism (Espen), em 2020 (BISCHOFF et al., 2020), para nutrição domiciliar, recomenda que, uma vez indicado suplemento oral para pacientes idosos, este seja mantido por pelo menos um mês para observância de custo-efetividade. Há forte tendência de queda na aceitação do suplemento ao longo dos três meses seguintes à alta hospitalar. Estudo conduzido por Ginzburg et al. (2018) avaliou a aderência no primeiro mês de alta de pacientes idosos, em que 65% destes já não tomavam o suplemento, 11% tiveram uma aderência parcial e somente 23% mantiveram o uso. A principal barreira para o não consumo do suplemento nesse estudo foi a ausência da prescrição médica, sendo o medicamento prescrito somente pelo nutricionista. Nota-se que, embora a prescrição seja uma atribuição do nutricionista, é muito importante que o médico assistente reforce e incentive os benefícios para o consumo do suplemento.

Se o paciente não apresentar melhora da ingesta acima de 60% com suplementação oral por três dias consecutivos, a Terapia Nutricional Enteral (TNE) deve ser indicada. Caso o paciente esteja impossibilitado de utilizar o trato gastrointestinal, principalmente com risco de desnutrição ou desnutrido, a Terapia Nutricional Parenteral (TNP) deve ser indicada precocemente. A TNE é, hoje, uma realidade crescente. Segundo o Ibranutri, 84% dos profissionais de saúde atendem pacientes com TNE exclusiva. Do ponto de vista da oferta nutricional e do controle microbiológico, recomenda-se o uso de dietas industrializadas (líquidas, prontas para uso, ou em pó, para reconstituição), pois garantem a adequação nutricional tanto qualitativa quanto quantitativa, e possuem riscos mínimos de contaminação da fórmula por perigos biológicos (micro-organismos e parasitas). A Terapia Nutricional Mista, em que se usa dietas industrializada e caseira (preparada com alimentos in natura) intercaladas, também pode ser utilizada, desde que monitorada e suspensa ao menor sinal de complicações.

Independentemente da via e do tipo alimentar proposto, tanto o paciente quanto o cuidador devem estar cientes e entendidos sobre a aquisição, o modo de preparo, o volume, o gotejamento, os horários, as técnicas para posicionamento e administração, a identificação de complicações (náuseas, vômitos, distensão abdominal, diarreia e outras), o tempo de uso e os cuidados gerais acerca da higienização e da conservação das dietas/alimentos.

Para uma desospitalização bem-sucedida do ponto de vista nutricional, a assistência do nutricionista deve se iniciar precocemente, durante os primeiros dias da internação hospitalar, por meio da identificação dos pacientes desnutridos e/ou com risco nutricional, com posterior estabelecimento do plano de cuidado, implementação e monitoramento da terapia nutricional e possíveis complicações (GONÇALVES et al., 2020). As orientações do cuidado nutricional em domicílio, independentemente da via de alimentação, devem ser realizadas ao longo da internação, visando à compreensão e ao envolvimento do paciente e dos familiares quanto à importância de se seguir com a prescrição nutricional. O monitoramento das metas nutricionais deve ser realizado nos pós-alta, visando melhorar as funções debilitadas relacionadas à alimentação e proporcionar mais qualidade de vida e saúde ao paciente.

*Nutricionista, pós-graduada em Nutrição Clínica e Fisiologia do Exercício, certificada Black Belt em Lean Six Sigma.

Referências

BISCHOFF, S. C. et al. ESPEN guideline on home enteral nutrition. Clin Nutr., v. 39, n. 1, p. 5-22, 2020.

CORREIA, M. I. T. D.; PERMAN, M. I.; WAITZBERG, D. L. Hospital malnutrition in Latin America: a systematic review. Clin Nutr., v. 36, n. 4, p. 958-967, 2017.

GINZBURG, Y. et al. Barriers for nutritional care in the transition from hospital to the community among older patients. Clin Nutr., v. 25, p. 56-62, 2018.

GONÇALVES, R. C. et al. Planejamento nutricional da alta hospitalar: breve revisão de literatura e proposta de instrumento de avaliação. Braspen J., v. 35, n. 4, p. 329-339, 2020.

TOLEDO, D. O. et al. Campanha “Diga não à desnutrição”: 11 passos importantes para combater a desnutrição hospitalar. Braspen J., v. 33, n. 1, p. 86-100, 2018.

VAN AANHOLT, D. P. J. et al. Diretriz Brasileira de Terapia Nutricional Domiciliar. Braspen J. v. 33, supl. 1, p. 37-46, 2018.

WAITZBERG, D. L.; CAIAFFA, W. T.; CORREIA, M. I. Hospital malnutrition: the Brazilian national survey (IBRANUTRI) a study of 4000 patients. Nutrition, v. 17, n. 7-8, p. 573-580, 2001.

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