Quando ouvimos falar em atendimento domiciliar, a primeira impressão que parece nos abarcar é a imagem do paciente idoso, acamado, que demanda cuidados especiais. Entretanto, ao longo dos anos, o modelo assistencial centrado no cuidado em domicílio tem ampliado o perfil de seus pacientes e expandido seus benefícios para o atendimento a diversas áreas da medicina, de modo a proporcionar resultados terapêuticos animadores em tratamentos contínuos que demandam, sobretudo, atenção com a segurança. Um exemplo inovador está no tratamento domiciliar a pacientes com doenças raras.
Em Guimarães, cidade portuguesa situada no Distrito de Braga, região Norte do país, a assistência prestada aos pacientes portadores de doenças lisossomais de sobrecarga (DLS), em especial a doença de Fabry, tem se destacado pelo pioneirismo na adoção do atendimento em domicílio. Desde o final do ano passado, um programa desenvolvido pelo Centro de Referência em DLS do Hospital Senhora da Oliveira, o maior entre os seis centros existentes em Portugal, tem disponibilizado a terapia de substituição enzimática, com profissionais para o atendimento que se deslocam até a casa do paciente em viaturas médicas equipadas de todo material necessário para administração intravenosa dos fármacos.
“São terapias que podem durar de 40 minutos a algumas horas. Durante este período, o paciente fica acompanhado do enfermeiro, que monitora seus sinais vitais e as possíveis ocorrências clínicas”, explica a coordenadora do Centro de Referências em DLS do Hospital Senhora da Oliveira, a cardiologista Dra. Olga Azevedo.
De acordo com ela, a iniciativa tem possibilitado a redução significativa dos riscos aos pacientes, que antes precisavam se deslocar quinzenalmente até o hospital para receber o tratamento intravenoso. Além disso, complementa a Dra. Olga, o modelo assegura a eficácia da terapia, uma vez que reduz sobremaneira as chances de abandono por parte do paciente.
“Antes mesmo da pandemia de Covid-19, o Centro já tinha o objetivo de implementar o tratamento em domicílio para os pacientes assistidos. A pandemia apenas tornou essa necessidade preeminente. Acompanhamos o aumento de casos na Espanha e na Itália de abandono de tratamento por pacientes que precisavam se deslocar até o hospital, e isso nos preocupou. No momento em que Portugal passou a registrar o aumento de casos de Covid-19, a implementação do projeto passou a ser a nossa prioridade”, frisa a dra. Olga.
Essa preocupação se justifica pelos riscos de complicação e mortalidade que a Covid-19 pode ocasionar aos pacientes com DLS. Embora se trate, em sua maioria, de pessoas profissionalmente ativas, com rotinas regulares de produção laboral, os portadores de doença de Fabry estão sujeitos a desencadear sérias complicações, as quais podem levar à morte.
ATENÇÃO DOMICILIAR
Atualmente, o Centro de Referência de Guimarães acompanha mais de 300 pacientes com DLS, sendo a maioria doença de Fabry. “Por se tratar de uma doença que é ligada ao cromossomo X, como tal, cerca de dois terços dos doentes são mulheres. Portanto, são quase duas mulheres para cada homem. A maioria dos doentes desenvolve os sintomas clínicos tardiamente, em especial na fase adulta. Vale ressaltar, ainda, que também por se tratar de uma doença do cromossomo X, as manifestações mais graves são encontradas nos homens”, complementa a cardiologista.
A dra. Olga relata que, embora o centro acompanhe mais de 300 pessoas diagnosticadas com DLS, pouco mais de 80 seguem em tratamento. Para dar início ao programa de atenção domiciliar, ela conta que foi necessário estabelecer rigorosamente alguns critérios, como forma de garantir a segurança e a eficácia da terapia. Um deles foi iniciar com um número limitado de participantes. O programa entrou em operacionalização em dezembro de 2020 com sete pacientes, selecionados entre os que apresentavam maiores riscos de contrair complicações e mortalidade com a Covid-19.
“Para ser elegível ao atendimento domiciliar, o paciente precisa estar em terapia intravenosa ou terapia de substituição enzimática, em regime de hospital-dia, a pelo menos seis meses, e, nesse período, não pode ter apresentado nenhuma reação adversa aos fármacos. Contudo, o paciente precisa manifestar por escrito seu consentimento em transferir sua assistência do regime hospitalar para o atendimento domiciliar. Depois, é preciso, ainda, que ele apresente condições para realização, em domicílio, da aplicação segura do fármaco”, explica a dra. Olga.
A estrutura para realização do atendimento domiciliar é relativamente simples e demanda uma Unidade Móvel de Apoio ao Domicílio, equipada com bomba de infusão para aplicação intravenosa da medicação e a presença do profissional de Enfermagem devidamente capacitado e orientado pela equipe multidisciplinar do Centro de Referência em DLS.
Além de oferecer mais segurança e reduzir as condições de abandono do tratamento, o atendimento domiciliar também possibilita mais humanização no cuidado e qualidade de vida para o paciente. Com o atendimento em domicílio funcionando das 8h às 22h, o paciente pode agendar o seu procedimento de acordo com as suas necessidades e conveniências. Essa flexibilização de horários para o agendamento do tratamento, no conforto do lar e na companhia de familiares, permite um ganho de qualidade de vida.
“Nossa expectativa é que essa experiência positiva, de atendimento domiciliar a pacientes com DLS, possa ser replicada nos demais centros existentes no país, inclusive para outros tipos de doenças raras. Temos notado que se trata de um modelo que é de interesse dos próprios pacientes, e esperamos que sirva de referência neste processo de implementação”, destaca a cardiologista. “Quando olho para trás, vejo que o que fizemos foi algo acertado, porque tem sido uma experiência bem positiva para os pacientes”, conclui.
(BOX) A SINGULARIDADE DE GUIMARÃES
O pioneirismo de Guimarães na assistência a pacientes com doença de Fabry não é por acaso. A cidade apresenta singularidades históricas e geográficas que acabaram despertando o interesse pela realização de uma minuciosa investigação da doença. Esse trabalho investigativo teve início há pouco mais de 15 anos e revelou conclusões que, hoje, ajudam a compreender a dinâmica das DLS na região.
“Começamos com um projeto para investigar as miocardiopatias hipertróficas, uma vez que a minha especialização é na área de Cardiologia, e, com esses dados, passamos a avaliar quantos daqueles pacientes poderiam ser portadores de doença de Fabry. A partir dali, passamos a notar que, na região de Guimarães, havia muitos doentes que tinham essa miocardiopatia, sendo que ela estava associada à doença de Fabry”, explica a dra. Olga.
O que mais chamou atenção durante o levantamento foi a constatação de que muitos desses doentes apresentavam a mesma mutação genética. “Ora, a doença de Fabry tem uma grande heterogeneidade genética – estão inscritas mais de mil mutações genéticas –, e o fato de aparecerem tantos doentes com a mesma mutação em uma mesma região geográfica nos fez pensar que, provavelmente, teríamos, aqui, o infecto causador da doença. Então, começamos a investigar todas essas famílias que estavam sendo diagnosticadas e começamos a perceber que, aparentemente, algumas delas não revelavam relação familiar identificada”, conta.
A partir dali, o esforço passou a ser concentrado na realização de uma investigação exaustiva do ponto de vista genealógico, que contou com a contribuição de historiadores da região de Guimarães. As pesquisas reviraram registros de batismo, matrimônio e até de óbito. “Fomos progredindo ao longo dos séculos até encontrarmos um ancestral comum a todas essas famílias atualmente com doença de Fabry com a mesma mutação genética. Esse ancestral foi identificado em 1611. Era uma senhora aqui mesmo da região de Guimarães. Hoje, temos 35 famílias em tratamento com a mesma mutação fundadora”.