Antonio Carlos Endrigo*
Era um domingo de fevereiro de 2019 quando fomos surpreendidos, em um programa de TV, com a divulgação da Resolução nº 2.227/2018, do Conselho Federal de Medicina (CFM), sobre o exercício da telemedicina. Nos dias seguintes, ocorreu uma enxurrada de duras críticas de diversos Conselhos Regionais, contrários a vários pontos da resolução e por não terem sido devidamente envolvidos no debate. O resultado foi a revogação, em abril do mesmo ano. E a consequência disso? Voltamos à famigerada Resolução nº 1.643/2001, da época ainda do recém estouro da bolha da internet, quando não existiam os famosos smartphones, as mídias sociais (Facebook e Instagram), as plataformas de mensagens instantâneas (WhatsApp, Telegram etc.). Enfim, continuamos nas trevas, enquanto países mais desenvolvidos já têm consolidada esta nova metodologia de atendimento.
A proposta do CFM era que médicos e entidades médicas enviassem sugestões, a fim de que as principais fossem compiladas, analisadas e atendidas na confecção da resolução. Durante o ano de 2019, nada aconteceu sobre uma regulamentação mais atual em telemedicina. O assunto foi deixado totalmente de lado pelas entidades médicas, até que, no final de 2019 e início de 2020, começou a maior crise sanitária mundial provocada pela pandemia de Covid-19, sendo o isolamento social uma das principais recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Como todos nós sabemos, o isolamento social é para evitar a circulação das pessoas, principalmente nos serviços de saúde, nos quais existe maior risco de contaminação. Portanto, já logo no início da crise sanitária, a telemedicina foi incentivada para que os pacientes acessassem os serviços de saúde para avaliação e orientação nos casos de suspeita de infecção pelo Sars-Cov-2. Entretanto, não havia uma regulamentação que permitisse esta metodologia de atendimento médico. Foi quando o Ministério da Saúde (MS), em março de 2021, publicou a Portaria nº 467, permitindo o atendimento direto entre médico e paciente.
Alguns mercados internacionais apontam um estágio de maior maturidade com relação ao atendimento por intermédio da telemedicina. Um dos melhores exemplos é a da Kaiser Permanente, que, em 2018, realizou 47 milhões de consultas médicas e 31 milhões de prescrições on-line1]. Pesquisas realizadas na unidade da Califórnia constataram que 93% dos pacientes afirmaram que o atendimento conectado atendia às suas necessidades.
Ao avaliar a efetividade de custos, há indicadores apontados no estudo “A atual tecnologia de telemedicina pode significar grandes economias”, da consultoria global Willis Towers Watson,[2] de 11 de agosto de 2014, de que a telessaúde tem o potencial de economizar mais de US$ 6 bilhões por ano para as empresas americanas.
A OMS apresenta uma definição mais holística de telemedicina, adotando-a como sinônimo de telessaúde. A telessaúde engloba demais profissionais de saúde, como nutricionistas, enfermeiros, farmacologistas, psicólogos etc., enquanto a telemedicina acaba sendo mais direcionada para o ato médico, embora você possa se deparar com esses dois termos utilizados intercambiavelmente.
Não podemos deixar de dar especial atenção à questão regulatória, pois foi ela que acelerou a adoção da telemedicina em seus diversos atores do Setor Saúde. Vale mencionar a Portaria nº 467 como a principal responsável pela ruptura do conservadorismo médico e que permitiu, como já mencionado, o atendimento direto entre médico e paciente.
A Portaria nº 467 deu origem à Lei nº 13.989, de 15 de abril de 2020, a qual manteve, praticamente, todo o conteúdo da portaria. Vale lembrar que a vigência de ambas está atrelada à crise sanitária. Isto significa que, obrigatoriamente, teremos que ter leis específicas que regulamentem a telemedicina para quando terminar a pandemia. É esperado, ainda para este ano, que o CFM publique uma nova resolução sobre o tema. Entretanto, há três pontos em discussão: 1) proibição da primeira consulta ser realizada de forma remota, isto é, é obrigatório que a primeira consulta seja realizada presencialmente; 2) territorialidade; e 3) remuneração da consulta remota.
É inconcebível uma resolução do CFM interferir desta forma na autonomia do médico, uma vez que o próprio Código de Ética Médica (CEM) posiciona-se frontalmente contra esta interferência. No inciso VIII está mais que explícito a questão da autonomia: “(…) renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho” (grifos meus).
Só quem pode avaliar e decidir a eficiência e a correção do seu trabalho é o próprio médico assistente. Ainda com relação a não renunciar à sua “liberdade profissional”, também é implícita a responsabilidade do médico, o qual responde pelos seus atos junto aos Conselhos Regionais de Medicina, em caso de imperícia, negligência ou imprudência, como já acontece atualmente, independentemente da prática da telemedicina, conforme está determinado no capítulo III, sobre Responsabilidade Profissional, art. 1º, parágrafo único.
Outro ponto controverso é sobre a territorialidade de atuação do médico. Para atendimento remoto, é muito difícil estabelecer um local físico, muito menos a possibilidade de fixar o paciente a um. O paciente pode estar em casa, no trabalho ou até mesmo viajando. O médico também pode estar em vários lugares, inclusive em outro país. Além de toda esta questão de mobilidade, como fiscalizar o local do atendimento? A melhor das hipóteses seria o registro IP (Internet Protocol), mas celulares, tablets e laptops “andam” por aí também. Enfim, parece-nos uma grande complexidade, no século XXI, tentar restringir ou estabelecer fronteiras de um atendimento.
Por último, há uma grande discussão sobre o valor da remuneração. Não exatamente o valor justo para uma teleconsulta, que deve ser estabelecido entre as partes (médico e sua fonte pagadora), mas, sim, qual valor em comparação a uma consulta presencial. Devem ter o mesmo valor ou serem diferentes? Para responder a esta pergunta, devemos lembrar quais são os principais componentes de uma consulta: conhecimento técnico, tempo despendido no atendimento, responsabilidade do médico e estrutura física e de recursos humanos, sendo estes últimos (estrutura física e recursos humanos) os de menor importância, pois continuam tendo que dar suporte ao médico.
A telemedicina é uma metodologia que deve cumprir os seguintes processos: assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; registros de saúde do paciente no prontuário médico; e, ao final do atendimento, deve ser enviado um sumário ao paciente.
Em 2020, com a chegada da pandemia, foi criado um arcabouço jurídico que levou a uma forte transformação tecnológica para o uso da telemedicina. Pacientes e médicos se relacionando remotamente, receitas médicas chegando nas farmácias e estas podendo dispensar os medicamentos de forma segura, inclusive os de controle especial, como os antimicrobianos, atestados emitidos de forma eletrônica com valor legal junto às empresas, pedidos de exames eletrônicos para os laboratórios. Portanto, temos todo um ecossistema em telemedicina funcionando em seus vários níveis. A telemedicina já é uma realidade no Brasil, mas e os resultados? E os desafios que temos pela frente?
Temos a questão regulatória para evoluir, pois, como já comentado, a legislação vigente prevê o uso da telemedicina somente durante a crise sanitária. A resolução do CFM é de 2002; a Resolução nº 2.227/2018 foi revogada e o Conselho ainda não a atualizou. Quanto aos resultados, há vários artigos publicados com dados bastante positivos, inclusive crescimento das teleconsultas, com grande aceitação por parte dos pacientes (estes estão preferindo um primeiro contato com seus médicos por meio de uma consulta remota, para somente depois fazer atendimento presencial, quando necessário, já que acreditam ser a forma mais resolutiva, prática e segura).
Levantamento feito pela Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) mostra que, entre fevereiro de 2020 e janeiro deste ano, foram realizados 2,6 milhões de atendimentos de telessaúde no país. A entidade reúne as 15 maiores empresas de assistência médica e exclusivamente odontológica do país. O estudo traz dados de oito delas, o que corresponde a 86% do total de beneficiários.
“As consultas pelo celular, computador ou tablet, com médicos, dentistas, psicólogos e outras especialidades, garantem mais acesso à saúde para os beneficiários de planos de saúde e evitam o risco de contaminação pelo novo coronavírus numa ida ao hospital ou clínica”, ressalta Vera Valente, diretora executiva da FenaSaúde.
Mostrando como a telessaúde se tornou uma solução inclusive para casos graves, em tempos de pandemia, 60% do total de atendimentos foram para urgências e 40% para casos eletivos, conforme aponta o levantamento. Mais de 80% dos pacientes tiveram suas necessidades atendidas de forma remota. A satisfação dos clientes ficou entre 75% e 94%, dependendo da operadora. Antes da pandemia de Covid-19, praticamente não ocorriam consultas remotas.
Outra vantagem da telessaúde é diminuir a desigualdade na oferta de atendimento no país, já que 53,2% dos médicos estão na região Sudeste, ante 18,4% no Nordeste, 15,3% no Sul, 8,5% no Centro-Oeste e apenas 4,5% na região Norte. “A telessaúde ajuda a reduzir esse desequilíbrio”, destaca Vera.
Diante desses números, não há o que questionar quanto aos benefícios da telemedicina para a saúde pública e privada, isto porque temos apenas um ano de experiência e foi preciso nos estruturar a toque de caixa para criar todo o ecossistema em pouco meses, mas estamos em franca atividade e crescimento. A transformação digital é o remédio do século XXI!
Antonio Carlos Endrigo
Médico cirurgião-geral, empreendedor, diretor de Tecnologia da Informação da APM e presidente da Comissão Organizadora do Global Summit of Telemedicine & Digital Health.