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A pandemia que encasula e transforma ambientes de cuidados

by viviejaque

 Carlos Hiran Goes de Souza*

“Para um historiador, tudo o que acontece transforma a sociedade. 

As revoluções, as guerras e as epidemias aceleram as transformações e a história.” 

(Leandro Karnal) 

Desde o mundo antigo, as transformações acontecem ciclicamente a partir dos acontecimentos determinantes das evoluções das sociedades. As epidemias, as guerras e as revoluções, assim como as crises econômicas, são marcos de passagem histórica que alteram os rumos da evolução social e a velocidade com que as transformações ocorrem. 

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu a pandemia do novo coronavírus e a grande possibilidade, em um curto espaço de tempo, do aumento do número de casos, mortes e países afetados. A partir dali, desencadeou-se a busca por soluções capazes de suportar os impactos sobre a capacidade de resposta dos sistemas nacionais de saúde ao redor do mundo. Os planos contingenciais de compras de equipamentos, materiais, medicamentos e tecnologia, as adequações físico-funcionais, as adaptações de protocolos assistenciais e de gestão de risco seguiram-se no esforço sem precedentes para o enfrentamento da demanda crescente dos casos graves. Medidas urgentes para o aumento da oferta de leitos de isolamento, cuidados intensivos, equipes e tratamentos especializados, entre outras, foram postas em prática. 

Segundo Leandro Karnal, “Estamos vivendo um processo de aceleração de tendências que vinham sendo discutidas desde muito tempo”. De fato, para muitas redes assistenciais, a rapidez da mobilização organizacional foi importante para resolver pendências antigas que não se alteravam por razões diversas. 

De modo  geral, não foram poucas as mudanças ocorridas nos modelos assistenciais e na rotina dos serviços de saúde. Desde o início, as autoridades sanitárias dos países estabeleceram uma transição contingencial para inclusão de serviços externos aos hospitais que assegurassem a continuidade da assistência aos pacientes Covid-19 e não Covid-19, desenvolvendo os chamados locais alternativos de cuidados (LACs). Os Estados Unidos, por exemplo, distribuíram um guia nacional de orientação para o uso desses espaços não convencionais, tais como hotéis, casas de apoio, unidades hospitalares móveis, residências, estádios e ginásios, no intuito de ajudar entidades estaduais, locais, tribais e territoriais a lidar com a eventual falta de capacidade e recursos nos seus sistemas. 

Os hospitais de campanha foram os primeiros LACs a serem adotados como opção de resposta ao aumento súbito e inesperado na demanda por leitos de cuidados clínicos, semi-intensivos e intensivos. Construídos, montados ou adaptados rapidamente, estas unidades de internação satélite serviram e têm servido de base suplementar à demanda reprimida pelos hospitais sobrecarregados. 

A outra alternativa foi a assistência domiciliar, conhecida há bastante tempo e que tem sido capaz de atender e acompanhar pacientes com a mesma efetividade de uma hospitalização convencional, garantindo a continuidade dos cuidados. Esse LAC, além de liberar leitos hospitalares para os pacientes críticos, otimizou recursos, expandiu a cobertura e minimizou os receios de contágio no deslocamento ou durante o atendimento dos usuários nas unidades de internação, nos ambulatórios e nos hospitais-dia. Países com larga experiência nesse modelo de atenção, como Estados Unidos, Canadá, Espanha e França, seguidos por Suíça, Alemanha, Reino Unido e Portugal, adotaram imediatamente essa opção. 

O COMPORTAMENTO COCOONING E O MOVIMENTO IN HOME

Na lógica atual de aceleração de tendências, o comportamento cocooning, ou encasulamento, emergiu do contexto pandêmico e antecipou o paradigma do acesso das novas tecnologias e da internet como fator de bem-estar individual e familiar. Em tese, esse processo intimista, estudado desde os anos 1990, valoriza o consumo de produtos, serviços, lazer e trabalho em casa com base nos princípios de  comodidade e facilidade de compra para um número expressivo de pessoas. Os teóricos do marketing consideram os shopping centers e os condomínios fechados dotados de áreas comerciais como uma extensão do cocooning, ao concentrarem, em um mesmo espaço físico, tudo aquilo que uma pessoa teoricamente necessita.

O encasulamento involuntário para evitar ou frear a velocidade da transmissão do vírus reacendeu o movimento da saúde in home, estimulado pelos mesmos princípios cocooning associados às expectativas de eficácia clínica e atenção diferenciada no lugar onde as pessoas vivem e convivem. O lar transformou-se em uma unidade de cuidados multidisciplinares, com protocolos assistenciais seguros e confiáveis, enfatizando a importância dos modelos home care no âmbito da prestação contínua de cuidados.

CONCLUINDO

A intensidade dos fatos que nos obrigam a refazer planos e nos preparar para as transformações que esta pandemia nos reserva não pode nos tornar vazios de expectativas. Há que se ter perspectivas otimistas de um final menos traumático para o que queremos proporcionar às pessoas que nos procuram por necessidade de tratamento e desejo de cura. Ouso pensar que esse triste rito de passagem histórica que estamos vivenciando vá propiciar, sobretudo, lições e amadurecimento pessoais e profissionais, e que os sistemas nacionais, regionais e locais de saúde venham a proceder reformas essenciais para o esperado novo normal. 

Pois, que venham cuidados hospitalares de alta confiabilidade, que estendam seus leitos virtuais para o lar “casulo”, com tratamentos dignos, no ciclo das pessoas que se ama, em harmonia com a esperança e a fé de que “mutaremos” nós o vírus. E que os princípios da vida cocooning agreguem valor ao movimento da saúde in home na saúde coletiva pós-pandemia que estamos reimaginando e redesenhando.

Carlos Hiran Goes de Souza 

Expert da ISQua, membro da IAQS e CEO da AACI Portugal & Brazil.

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